domingo, 15 de fevereiro de 2015

Transgressividade #1: Begotten (1991)

Capa de Begotten
Há tempos que eu planejava escrever sobre Begotten, mas para fazer isso eu sabia que teria de assistir o filme novamente. Fez-se necessário experimentar mais uma vez a sensação de assistir esse filme.

Àqueles que desconhecem essa magnífica obra, tentarei colocar em adjetivos o que esta representa: duro, agoniante, torturante, místico, blasfemo, e demais outras designações que fazem de Begotten uma das obras mais interessantes do cinema.

Assistir Begotten é uma experiência árdua e complicada. A atmosfera do filme é altamente simbólica, tanto é que o filme tornou-se conhecido como um “filme para cultos”, mas deve-se ressaltar que, apesar de tudo, essa obra – em nenhum momento – pode ser considerada vulgar ou um trabalho feito apenas para “provocar”.

Constituído de uma fotografia extremamente intensa (ocasionada pelo uso de uma película de 16mm reversível), a história abarca desde ocultismo metafísico à um surrealismo pirado. O filme também não tem diálogos nem trilha sonora (há apenas uma respiração inquietante, ruídos de grilos e em alguns momentos, sons atmosféricos para agregar à carga grotesca do filme), o que torna ainda mais difícil assisti-lo de forma integral.

A figura de “Begotten” foi constantemente trabalhada por Merhige. Tendo trabalhado nesta cerca de quatro anos: refinando, moldando, fotografando, refotografando e tirando, a cada fotograma, a melhor representação que poderia encontrar. Merhige, com uma teimosia quase “Kubrickiana”, fez de tudo para encontrar a representação ideal daquilo que buscava.

O que mais atenta aos que já assistiram esse filme é quanto ao enredo. Por conter um contexto extremamente complexo e com mínimos detalhes característicos dos personagens, torna-se não só difícil, como quase um desafio tentar compreender Begotten em sua totalidade. Apenas nos créditos finais é que Merhige nos dá uma dica do que pode estar acontecendo em sua película, ao nominar três de seus personagens: Deus, a Mãe Natureza e o Filho da Terra (em carne e osso).

Intuitivamente, podemos perceber certa ligação desses três personagens com a história da Criação. Mas o que é completamente perceptível – e até certo ponto explícito – é que a história é intensamente modificada.

"God killing himself", frase que aparece nos
créditos do filme para descrever esta cena.
Um Deus enlouquecido se autoflagela após se relacionar com a [mãe] Natureza (imagem ao lado), que por sua vez, gera um homem já adulto, com o qual percorre durante o decorrer da sua realidade fria e dolorosa, marcada pela violência e pela irracionalidade. Ao nascer do Filho da Terra, algumas pessoas (que penso representarem a humanidade) o capturam e começam uma sessão de mutilações das mais variadas formas.

Essa sessão de mutilações representam (ao meu ver) toda a dor e sofrimento que a humanidade traz para aquilo que, supostamente, Deus criou. Em palavras pobres, pode-se dizer que Merhige tentou metaforizar a ideia de que "a humanidade é o verme que corrói tudo de positivo que há".

Embora haja certa associação à Criação, Merhige não deixa claro qual a realidade temporal dos acontecimentos do filme. Cabe ao telespectador tentar desvendar o imbróglio criado por Merhige e, dessa forma, conseguir desenrolar o “novelo de lã”.

Além da representação do sofrimento e da dor feita por Merhige, é notório a abordagem das ideias de “princípio” (nascimento) e “fim” (morte), que desencadeiam em reflexões que estão muito além de uma mera “questão filosófica maçante”. Intercalam-se momentos do politeísmo egípcio, do cristianismo, crenças pagãs e demais simbolismos, que – talvez ajudem ou atrapalhem – ainda mais a compreensão do filme, mas que são, sem dúvida, cruciais para a magnitude do enredo.

O que se pode concluir é: Begotten é um filme único em toda a história do cinema. Direcionado a um público específico, Begotten certamente não entrará no gosto popular, mas àqueles que apreciam estéticas experimentais e obras verborrágicas, Begotten é um filme imprescindível. Aos telespectadores desavisados, cabe a coragem e a paciência de se propor a assistir e tentar compreender este que é um dos filmes mais intrigantes de toda a história do cinema.
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Curiosidades:

1. Merhige sofreu um grave acidente de viação aos 19 anos. Esse mesmo acidente influiu na forma como ele trabalhou com o oculto e o obscuro.
2. Merhige já dirigiu alguns videoclipes para artistas como: Marilyn Manson, Danzig e Interpol.
3. No videoclipe Cryptorchid, de Marilyn Manson, aparecem algumas imagens do filme.
4. A banda brasileira Woslom também usou algumas imagens do filme no videoclipe de Purgatory.

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